A imediata e enérgica reação de sindicatos, parlamentares e magistrados ao artigo 18 da Medida Provisória 927, que autorizava a suspensão de contratos de trabalho e dos salários por até quatro meses, fez o governo Bolsonaro aparentemente recuar da proposta mas as ameaças aos trabalhadores continuam.
O artigo 18, revogado após a grita geral, não é o único dispositivo da MP 927 a ameaçar direitos dos trabalhadores. É o que afirma, entre outros, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra).
Em nota divulgada na segunda-feira, 23/3, a entidade, que congrega cerca de 4.000 magistrados e magistradas de todo país, declarou “seu veemente e absoluto repúdio” à MP 927/2020, que dispõe sobre “medidas trabalhistas” a serem adotadas durante o período da pandemia Covid-19.
Para a Anamatra, a MP “lança os trabalhadores e as trabalhadoras à própria sorte” ao “privilegiar acordos individuais sobre convenções e acordos coletivos de trabalho, violando, também, a Convenção nº 98 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)”.
A medida “torna inócua a própria negociação, ao deixar a critério unilateral do empregador a escolha sobre a prorrogação da vigência da norma coletiva”. A Constituição Federal, lembra a entidade, “confere à autonomia negocial coletiva, e aos sindicatos, papel importante e indispensável de diálogo social mesmo, e mais ainda, em momentos extraordinários”.
A MP 927 suprime ainda “o direito ao efetivo gozo de férias”, sem garantir “a tempo e modo, o adimplemento do 1/3 constitucional”. Também como se fosse possível institucionalizar uma “carta em branco” nas relações de trabalho, a MP obstaculiza a fiscalização do trabalho, conferindo-lhe natureza meramente “orientadora”, afirma a Anamatra.
A entidade assinala também que: “ao apenas pedir o sacrifício individual das pessoas que necessitam do trabalho para viver, a MP nº 927 indica que soluções que impliquem em pactos de solidariedade não serão consideradas, tais como a taxação sobre grandes fortunas, que tem previsão constitucional; a intervenção estatal para redução dos juros bancários, inclusive sobre cartão de crédito, que também tem resguardo constitucional; a isenção de impostos sobre folha de salário e sobre a circulação de bens e serviços, de forma extraordinária, para desonerar o empregador”.
Diminuição e suspensão de pagamentos ainda são uma ameaça
Em vídeo divulgado em suas redes sociais nesta segunda-feira, o deputado Federal Glauber Braga (Psol) indica haver na revogação do artigo que mencionava diretamente a suspensão dos contratos e dos salários por quatro meses “uma pegadinha”. A MP 927 “pode continuar aplicando a mesma coisa a partir do seu artigo 2º”, afirma o parlamentar.
O Art. 2º da MP 927 afirma que: “Durante o estado de calamidade pública (…), o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição”.
Para o parlamentar, a “norma (ditada pelo artigo revogado) pode se manter na relação direta trabalhador-empregador”. Poderá ser imposta a cláusula (de suspensão dos salários) “no momento em que será negociado com o trabalhador o contrato de trabalho”, assinala o parlamentar. “Temos que trabalhar para a derrota do conjunto da MP mas focar agora, mais especificamente, na derrubada desse artigo 2º”, defende.
Além da MP 927, veículos de comunicação já anunciaram que o Ministério da Economia deverá editar uma nova MP com a possibilidade de redução de 50% da jornada e dos salários durante o período de calamidade pública, ou seja, até 31 de dezembro.
Medidas do governo protegem riscos e fragilizam os mais pobres
Em sua página oficial, o Andes-SN lembra que enquanto o governo Bolsonaro “sinaliza medidas que deixam milhares de trabalhadores em situação ainda mais frágil, segue na política de socorro aos bancos e empresas”.
O Banco Central divulgou, na última semana, que irá comprar títulos soberanos do Brasil denominados em dólar (global bonds) das instituições financeiras nacionais. A operação é com compromisso de revenda (repo). O estoque desses títulos é de US$ 31 bilhões (R$ 161 bilhões).
As medidas do governo preveem, ainda, socorro à aviação civil e às empresas do agronegócio; a liberação de R$ 135 bilhões nos compulsórios – parcela que os bancos são obrigados a depositar no Banco Central (BC) e outras medidas de socorro às empresas via bancos públicos.
A Caixa Econômica Federal, por exemplo, deve colocar R$ 75 bilhões à disposição, com R$ 40 bilhões sendo destinados ao capital de giro de empresas e R$ 30 bilhões sendo usados para comprar linhas de crédito de bancos pequenos e médios. O Banco do Brasil e o BNDES vão adotar medidas semelhantes.
“A pandemia do novo coronavírus explicita ainda mais as desigualdades sociais em nosso país e expõe sobremaneira a parcela mais pobre da classe trabalhadora a uma situação de adoecimento e pauperização. A prioridade deve ser salvar a vida das pessoas e não os bancos e empresas”, ressalta Antonio Gonçalves, presidente do ANDES-SN.